Foi durante a leitura de uma revista que me ocorreu o mote para a realização deste artigo. Esta revista continha uma entrevista com Kasparov em que este referia que “Putin não tinha alergia ao sangue”. Um lapso de leitura fez-me entender erradamente a frase. Na altura retive antes que “Putin não tinha alegria no sangue”. Fiz uma interpretação errónea do que estava escrito e adaptei ao que faria mais sentido no meu entendimento interior.
Nesta mesma entrevista, Kasparov referiu também que todos os ditadores mais tarde ou mais cedo caíam, contudo a diferença era a de que Putin tinha o dedo num botão de uma arma nuclear.
Ao ler esta entrevista estruturada sob o meu lapso de entendimento fez-me pensar que a pulsão libidinal (a alegria) na psique (no sangue) seria, então, o ingrediente para evitar as consequências de um predomínio excessivo de uma pulsão agressiva desmembrada (o dedo no botão da bomba nuclear). Contudo, Kasparov dizia o mesmo por outras palavras de linguagem menos psicodinâmica.
Foi no ano de 1905 quando Freud usou o termo “pulsão” pela primeira vez. Ele seleccionou a palavra alemã “trieb” para defini-la, e não a de “instinkt”, porque esta última era utilizada para qualificar o comportamento animal, enquanto “trieb” representava as pulsões independentemente do seu objecto ou orientação. Durante anos Freud tentou desenvolver os conceitos relacionados com as pulsões, mas de alguma forma teve dificuldade em esclarecê-los, confundindo-os em algumas fases com os instintos de vida e de morte que o autor também desenvolveu.
Sob o ponto de vista epistemológico podemos entender esta pulsão agressiva como uma energia psíquica originária do Id, geradora de uma tensão que se direcciona e é descarregada em outrem.
Mas se Freud foi pioneiro na compreensão da teoria das pulsões psíquicas, mais tarde Klein deu a esta teoria uma melhor clarificação. Klein trouxe-nos a pré-história do Édipo, que acabou por ser a chave para a explicação de transtornos mais graves, como os das psicoses. Segundo Klein, a pulsão agressiva tem o principio original de defender a relação libidinal do bebé com a mãe. No entanto, se este propósito primário não for atingido, a pulsão agressiva parece desenvolver uma função oposta à sua original.
Na sua génese a pulsão agressiva parece existir sob a causa da preservação da relação afectiva da díáde através da defesa do “seio bom” e ataque ao “seio mau” em ordem de preservar o “seio bom”. Com isto não se pretende dizer que o bebé tem em conta a preservação do outro, mas sim que pretende preservar o que vem de positivo do outro e atacar o que sente de negativo.
Um recém-nascido usa a pulsão agressiva desde o primeiro dia de vida quando “grita para ser amado/alimentado ou se zanga quando recebe algo com que se sente desconfortável. Todo o uso desta pulsão é posto em favor da preservação e aquisição de experiencias positivas do exterior, uma experiencia de esplendor do principio do prazer que não só cumpre função do bem estar, como também a missão de alicerçar uma “boa” base para a edificação égoica.
Somente num último cenário, num cenário em que vence o fim da ilusão do bem, em que a esperança é derrotada por todas as tentativas de ponte fracassada, esta pulsão parece ser convocada exclusivamente para um ataque indiscriminado à relação primária (ambos os seios são “maus”).
Trata-se de uma descrença de que alguma das partes valha ser defendida pois não são sentidas ou esperadas experiências positivas do exterior. A ansiada paz dá lugar à guerra. A protecção do “bem” dá lugar à sobrevivência na instabilidade. E a felicidade dá lugar ao medo. O outro/os outros projectados deixam de representar uma curiosidade para se tornarem uma ameaça.
Esta dinâmica psíquica é visível na relação com o outro sob a mesma forma que é sentida internamente pelo sujeito, representando duas consequências majores ao invés de uma regulação equilibrada da fase depressiva. Uma, é que o outro/outros são percepcionados como negativos ameaçadores à coesão égoica fragilizada do sujeito; outra é a de que essa projecção é convicta – “Esta parte negativa não é mesmo minha.” – ou seja o sujeito fica patologicamente crente e projecta massivamente.
Se internamente as pontes dão lugar a trincheiras e muros, na relação com o outro/outros estes aspectos patológicos impedem uma vivência vinculativa, dando antes lugar a uma vivência anulativa de uma relação de paridade.
Sempre houve guerra. Em menor ou maior grau, ao longo dos séculos, a história da civilização está recheada de episódios de movimentos massivos de agressividade entre seres humanos. Relativo a este fenómeno, no ano de 1932, Freud e Einstein deram início a uma troca de correspondência sob a proposta de pensarem o tema da guerra.
Einstein tomou a iniciativa e questiona Freud se haveria “uma maneira de libertar os homens da guerra inevitável?” (Freud & Einstein 1997, pp. 59). Posteriormente, Einstein questionou se era “possível dirigir a evolução psíquica dos homens para poderem resistir à psicose do ódio e da destruição” (Freud & Einstein, 1997, pp. 61 e 62). Ao que Freud responde que o estabelecer dos laços entre os homens deveria agir contra a guerra “(Freud & Einstein, 1997, pp. 72).
A questão colocada por Einstein de remover os homens de uma psicose parece supor afastar os homens de uma dominação maior da pulsão agressiva, ao que Freud relembra a necessidade dos homens estarem ligados entre si por via afectiva, o que na sua essência parece sugerir que estando a pulsão libidinal presente e coexistente com a pulsão agressiva, esta última poderia servir outro principio que não o destrutivo.
Freud termina sua carta dizendo que “tudo o que se relaciona com a evolução cultural joga contra a guerra” (Freud & Einstein, 1997, pp. ).
Mesmo que as explicações de Freud não fossem suficientemente claras para resolver o problema da guerra, este toca em duas questões fundamentais: a importância da proximidade entre os homens para modelar a pulsão agressiva pela existência, também, da pulsão libidinal; assim como a importância dos aspectos culturais, que a um nível intrínseco pode ser pensado como o período de latência que se sucede ao Édipo. A latência, tão bem descrita nos seus textos, cessa o conflito de Édipo e o indivíduo desperta interesses intelectuais.
Em suma, Freud oferece duas ideias como hipóteses para moderar a pulsão agressiva. Uma que decorre num tempo inicial (a fase oral) onde sugere a possibilidade da existência de uma pulsão libidinal desperta capaz de ligar as pessoas e outra que poderia ser agida à posteriori – uma solução cultural que educaria pela sublimação da pulsão agressiva desentrelaçada da pulsão libidinal.
Outro aspecto importante nessas cartas era a ideia de que a pulsão agressiva dirigida para o exterior, seria destrutiva, contudo se dirigida ao Eu, ganharia a possibilidade de um caminho moral promotor de cultura humana. Ou seja, aquando possível de ser integrada, a pulsão agressiva seria promotora de neurose.
Esta questão da existência de uma harmonia entre as duas pulsões foi muito investigada por Freud. O autor designou inclusive a necessidade de um entrelaçamento entre os dois movimentos para a aquisição de um psiquismo saudável, ao invés da existência de uma ou de outra pulsão isoladas.
Também com Klein ficou mais claro o papel determinante da pulsão libidinal na modelação da pulsão agressiva. Parece-nos, então, que fará mais sentido a primeira ideia de Freud, como resposta às questões levantadas por Einstein, do que a segunda proposta Freudiana referente ao papel dos aspectos culturais que teriam um efémero efeito, podendo assim apenas pausar ou suavizar a agressividade, reprimindo-a.
Numa época em que ganha expressão a massificação de movimentos de destruição a compreensão de como uma determinada construção interna pode afectar a relação de um ser com outros pode ser de relevância.
A psicologia social diz-nos que a identificação ao grupo induz o indivíduo a pôr em prática comportamentos inesperados para os quais haveria já uma susceptibilidade psíquica, mas que não se manifestavam sem essa identificação colectiva.
Reconhecer esta dinâmica pulsional para a guerra ou para a paz no interior do sujeito ou posta em acto pela “força” e credibilidade proporcionada pelo grupo parece ser da maior importância nos dias de hoje onde temos vindo a constatar um crescimento de patologias de acto e que se manifestam sob diversas formas de violência (ambiental, digital, balística, direitos humanos, entre outros).
O fenómeno da identificação ao grupo é descrito como uma identificação entre um número de pessoas com base nas suas diferenças percebidas de status e na percepção de legitimidade e estabilidade dessas diferenças de status. Também na correspondência com Einstein, Freud (Freud & Einstein, 1997) enuncia a máxima de que “a união faz a força” no sentido de que isso conferiria credibilidade à psicose colectiva.
No seu livro “Mass Psychology” (2004), Freud refere a necessidade de uma pessoa ter de se identificar com os pares e reconhecer um líder que lhe empreste credibilidade para as suas crenças. Afirma também que esta seria uma manifestação inconsciente e que, portanto, a agressão seria mais poderosa do que a bondade. Os ideais do grupo poderiam superar os princípios pessoais ou mesmo os de auto-preservação.
Um exemplo prático e actual da força que um grupo pode ter na passagem ao acto de um sujeito com esta predisposição dinâmica latente pode ser encontrado no grande número de suicidas armados ou em outro tipo de voluntários europeus que se junta ao auto proclamado estado islâmico sem qualquer ligação, raiz ou conhecimento profundo da sua ideologia.
Novamente neste caso, parece que a susceptibilidade da dinâmica interna do sujeito e a sua disposição para a sua realização manifesta o conduz à demanda de um grupo de identificação que a torne viável e exequível. Um Sírio com ligações a um grupo terrorista pode ai estar inserido numa posição de maior passividade, ao passo que um europeu se pode tornar um suicida sem que tenha uma identificação com a causa religiosa, mas sim uma identificação com a dinâmica psíquica destes novos pares.
Podemos assim compreender como muitos comportamentos violentos, ou de outra natureza, se sucumbem numa determinada causa para justificarem tais actos, mas que não são mais do que canais de concretização em acto de organizações internas que urgem pela sua manifestação em contexto social. Como se trata-se de um reencontro, de uma revivência de algo que sempre viveu e vive internamente. Embora antagónicamente, no fundo, esta procura de destruição é também a procura de um sentido.
Podemos pensar que a evolução das tecnologias sociais têm um papel proliferador deste fenómeno. De certa forma os meios de comunicação, nomeadamente as redes sociais, têm permitido e possibilitado um maior conhecimento, aproximação e creditação de grupos com uma dinâmica pulsional em que a agressividade não se encontra a favor da preservação da relação afectiva, algo que outrora seria banido e reprimido pela micro-sociedade envolvente.
Estes movimentos colectivos ganham assim novo alento, surgem dos escombros / dos lados mais negros para a luz do dia, a nossa realidade. Alguns continuamente rejeitados pela sociedade, como é o caso do movimento do auto-proclamado estado islâmico, mas outros aos quais as franjas da sociedade se rendem por existir uma identificação a esta forma de ser, como é o caso do crescimento do populismo da extrema-direita na Europa ou a eleição de Donald Trump nos E.U.A..
Depois destas reflexões parece evidente que se Putin não tinha alergia ao sangue, este com certeza não teria alegria no sangue. A alegria que um outro lhe dera para que de um outro se possa alegrar.
Em tudo o que conhecemos a natureza parece procurar um equilíbrio que a sustente. Também uma livre e saudável formação do aparelho psíquico parece procurar uma suficiente dose de objectos de relação interna positivos para suportar os fantasiados como adversos.
A não ocorrência de uma introjecção suficiente destes primeiros / a deficiência de alegria no sangue levara a um desequilíbrio de base que influenciará determinantemente a dimensão pulsional do sujeito e por consequência a relação deste com o outro/outros. Sem alegria e com visão turva da realidade, o sujeito reflecte esse viver interno para as suas relações externas. O ódio supera o amor. A destruição supera os laços. A morte supera a vida.
Talvez este seja o nosso grande desafio do agora. Manter o equilíbrio que até então tem vindo a ser conseguido. Tal como o ego precisa da força do afecto para se reunir com o seu todo, também os povos precisam de uma maioria de crentes no afecto do e para o outro para resistirem a uma contaminação de novos seres desafectados.
… sendo esta uma questão nuclear, ora pode gerar energia/calor ora ser destrutiva.
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